top of page

Solar tem futuro incerto com imobiliária

Por Eduardo Manhães

Eduardo Manhães

Da "linda e magnífica fazenda", um "edifício de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso”, como descreveu o romancista Bernardo Guimarães em "A escrava Isaura", pouco restou. O Solar dos Airizes, sede de um antigo engenho açucareiro em Campos dos Goytacazes, e que serviu de inspiração para o autor mineiro contar a saga da escrava branca, está em ruínas. Propriedade de uma empresa imobiliária, a Teixeira Holzmann, o terreno vai servir para a construção de um condomínio, enquanto o casarão pode virar filial do escritório de Londrina, no Paraná.

De imponente moradia da região, o Solar se tornou um negócio. A venda foi firmada com Nelson Lamego, neto do historiador campista Alberto Frederico de Moraes Ribeiro Lamego, de quem comprou o casarão. Os interesses do grupo imobiliário na cidade não são recentes, eles mantêm um mega condomínio de 500 mil metros quadrados, o Royal Boulevard Premium. A intenção sobre a construção do século XIX não é clara. De acordo com o vigia do local, identificado como Jorge, o plano é estabelecer uma filial, onde seriam negociadas as vendas de lotes de terrenos da empresa. No entanto, o gerente de compras da Teixeira Holzmann, Leonardo Nunes confirma apenas a construção de mais um condomínio, nos fundos do casarão, ainda sem data definitiva.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou o imóvel em 1940. Essa ação garante a proteção do lugar contra qualquer ação que o destrua ou descaracterize. Segundo o órgão, é responsabilidade do dono toda restauração ou reforma do espaço, com a manutenção da estrutura exterior original. Nunes diz que para dar início às construções no terreno e à restauração do Solar é preciso fazer levantamentos arquitetônicos exigidos pelo Instituto.

- De modo geral para restauração, o Iphan solicita, além dos projetos, plantas, levantamentos planialtimétricos, fotográficos a descrição dos métodos construtivos e materiais a serem aplicados – afirma.

O diretor do Arquivo Municipal de Campos, Carlos Roberto Bastos Freitas, e museólogo confirma a necessidade de atender a todas as normas do Iphan para, em seguida, colocar em prática os planos da imobiliária. Ele acredita na capacidade de dar novos usos aos prédios históricos como no Palácio do Catete, antiga residência presidencial e atual Museu da República, mas vê a especulação imobiliária como uma ameaça à preservação.

- O grande problema está na questão da especulação imobiliária. Porque você não preserva para esperar a valorização e quando o prédio cai, o proprietário alega não ter dinheiro e por isso, não faz nada. Mas devo lembrar sobre a impossibilidade de ter investimento do dinheiro público em imóveis particulares, a não ser que ele seja cedido para alguma esfera governamental por um prazo que compense o investimento na sua manutenção – diz.

Há seis anos houve uma reunião de lideranças da prefeitura da cidade com o então dono, Nelson Lamego, em uma tentativa de negociar a compra do Solar. Na época, Freitas era um dos participantes e, de acordo com ele, a investida não foi à frente por causa do alto valor cobrado por Nelson. A justificativa do preço foi a exigência feita pelo filho dele, de mesmo nome, Nelson Sance Lamego, que mora no Rio de Janeiro.

 

Região do Solar dos Airizes surge no século XVIII

O terreno onde fica o Solar pertenceu aos jesuítas de 1648 até 1759, quando foram expulsos por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. O motivo era o poder econômico e político exercido pelos padres. O pretexto do nobre foi a tentativa de atentado contra o rei de Portugal, Dom José I, um ano antes. Na época, os clérigos foram acusados de traição pelo crime à Coroa. Assim, eles tiveram que deixar a metrópole e as colônias portuguesas e foram se refugiar nos países nórdicos da Holanda, Alemanha, Inglaterra e Escócia, por exemplo. Movimentos parecidos, contra a presença de jesuítas, também ocorreram na Espanha e na França.

No ano de 1781, o comerciante português Joaquim Vicente dos Reis se tornou o responsável por aquelas terras, concedidas pela Coroa portuguesa. Ele trabalhava na colônia do Sacramento, localizada atualmente no Uruguai. O lugar passou uma disputa com mais de 90 anos entre espanhóis e portugueses. Vicente dos Reis também comercializava escravos em Sacramento, o que conferiu a ele, fortuna. Com isso, o português deixou os negócios na região uruguaia e passou a viver em Campos.

Na época, só havia o Solar do Colégio, atual Arquivo Municipal de Campos, erguido pelos jesuítas. A propriedade se estendia até a região onde, depois de ser desmembrada, foi construído o Solar dos Airizes. Com o casamento entre a filha de Vicente dos Reis, Maria Joaquina do Nascimento e o capitão Paulo Francisco da Costa Viana, o terreno ficou como herança. Anos mais tarde, assim como outras fazendas, o Airizes foi vendido para o comendador Cláudio do Couto e Sousa já em meados do século XIX.

Os esforços de Couto e Sousa levaram à edificação do Solar dos Airizes. A partir desse momento, o casarão se tornou tradição entre a família Couto-Lamego, dona do espaço por gerações até 2014 quando, então, foi vendida para imobiliária paranaense Teixeira Holzmann. Para o diretor do Arquivo, a casa de Couto e Sousa ficou só conhecida depois que o historiador Alberto Frederico de Morais Lamego morou por lá e deixou uma contribuição cultural para o país.

- O casarão se tornou mais conhecido por causa de um dos moradores dele, o Alberto Lamego, pai. Ele estava produzindo na Europa, desde 1912, o livro “A Terra Goitacá”. Quando volta em 1920, dá uma ênfase maior nas pesquisas e traz da viagem uma grande quantidade de documentos. O Airizes se tornou muito importante por causa da preponderância do escritor no movimento cultural de Campos e do próprio Rio de Janeiro – afirma.

O autor dos oito volumes de “A Terra Goitacá” continuou produzir até o final dos anos 50. Partes dos escritos estão no Instituto de Estudos Brasileiros cedidos, desde nos anos 30, para Mário de Andrade quando estava na formação da Universidade de São Paulo (USP).

Campos dos Goytacazes chegou a ser cogitada como capital do estado. Quando houve o desmembramento das capitanias hereditárias, forma de controle da colônia por parte de Portugal, a cidade era responsabilidade do Espírito Santo. Então, em 1732, a cidade passa a fazer parte da província do Rio de Janeiro. Freitas vê a produção de açúcar como um fator importante para dar visibilidade à cidade do interior que, segundo ele, também foi pensada em ser capital de um novo estado pela localização cultural na época.

- Campos tinha uma grande projeção econômica por causa do açúcar, por isso, foi cogitada. O mesmo aconteceu em mais duas ou três oportunidades, quando se pensou que ela poderia ser capital de um novo estado, formado por partes do Rio, Minas e Espírito Santo. Lá se forma um bolsão de uma cultura mais ou menos parecida, do Itapemirim até Macaé, mais ou menos, e de lá até perto de Leopoldina, Cataguases e região. Até 1970, durante a ditadura militar, ainda havia reflexões sobre isso – diz.

No Brasil, o motor da economia no século XIX era o açúcar. O clima favorável e a extensão territorial fizeram com que a cidade interiorana fosse um polo na produção do produto. Por algum tempo, nos fundos do casarão, também foi construído um engenho, posteriormente demolido pelas técnicas ultrapassadas.

Desde 1830, começou o processo de industrialização no modo de extrair o açúcar da cana, que passou a ter máquinas a vapor vindas da Bélgica, França e Inglaterra. Além de deixarem o produto mais claro, o ensacava. A técnica foi levada para Campos pelo francês Victor René Sence, também responsável pela montagem de outras usinas no país.

Lendas do casarão assustam moradores da cidade

As lendas acerca do Solar permanecem até hoje no imaginário do povo campista. De acordo com a historiadora da cidade Graziela Escocard, por lá, reza a lenda que na noite de lua cheia, a escrava Isaura sai do Solar, atravessa a rodovia BR-356 (ligação entre as cidades de Belo Horizonte e São João da Barra) e toma banho no Rio Paraíba do Sul, o qual corta a cidade do norte fluminense. Por isso, moradores da região evitam passar por lá quando anoitece.

Outro mito destacado por ela diz que quem visita ou se aproxima do casarão ouve gritos, sussurros e chacoalhar de correntes, associados a Isaura. Durante uma visita ao local, ela diz se sentir mal ao estar próxima à suposta moradia de Isaura, mas acredita nisso como um efeito da história.

- Eu senti terror quando visitei lá. Ainda mais depois de tantas histórias já ouvidas por mim. Não acredito em nada, mas acho que por ter sido um local de trabalho escravo, a memória do lugar pode sim influenciar nos sentimentos e percepções – conclui.

A descrença de Graziela se explica pelo fato dela não ter encontrado nenhum documento histórico na cidade que comprove a existência de uma escrava branca, chamada Isaura naquele Solar. A publicação do artigo dela, em 2009, pela pós-graduação em Literatura no Instituto Federal Fluminense (IFF) de Campos, no qual descrevia os mitos da cidade em relação à história de Bernardo Guimarães não foi aprovada pelo secretário de cultura da prefeitura. Na ocasião, Orávio de Campos Soares achou o conteúdo inadmissível por “acabar com a tradição regional”.

 O museólogo Carlos Freitas concorda com ela, pois, para ele, ainda não há nada que possa basear a afirmação. O Solar campista, descrito no romance, fez aumentar os rumores do uso do local como cenário para a novela “Escrava Isaura” durante a produção de 1976, da TV Globo.

 - Parece que fizeram algumas externas lá naquela época, mas depois disso, o Solar entrou numa decadência muito grande por falta de conservação. Só algumas tomadas externas e por isso, se ligou a questão da escrava Isaura ao lugar, mas até hoje não se comprovou através e documentos que ela existiu ou que seria da nossa região  – afirma.

Nem todos os pesquisadores que concordam com a historiadora. Durante a apresentação do artigo em um congresso de patrimônio na Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), no mesmo ano de publicação, Graziela diz ter sido criticada por outros participantes, pelo fato de tentar desmitificar uma história cultural da cidade. Ela chegou a ouvir frases como “você destruiu a minha infância” e “você tem certeza que já vasculhou tudo em Campos?”. Ela garante ter pesquisado em todas as fontes disponíveis na cidade, mas sem sucesso.

Suposta existência de Isaura divide opiniões

A discussão sobre a veracidade da história de Bernardo Guimarães atravessa gerações. A estudante de Psicologia, Rubiana Viana é campista e mesmo no ambiente familiar, onde a maioria crê na existência da escrava, ela não vê fundamento. Para a jovem de 20 anos, mesmo que houvesse uma escrava mais clara, dificilmente ela seria incorporada junto aos brancos. Já a mãe dela, a secretária Cristiane Viana, de 49 anos, acredita na história e diz ser esse um dos motivos da abolição da escravatura em Campos.  

Rubiana percebe que a diferença de opiniões ocorre por causa do contexto de criação da mãe. Ela vê a influência da família para a propagação de histórias e por ter participado menos disso, tem uma opinião contrária a de Cristiane.

- Eu ouvi menos histórias da minha família em relação aos acontecimentos nas redondezas aqui de Campos em relação a isso. Enquanto minha mãe ouviu mais. Por isso, eu não acredito que ela tenha existido – diz.

Para Freitas, a escolha de Campos como cenário do romance entre Isaura e Álvaro não surpreende. De acordo com ele, desde o século XVIII, a cidade ocupava uma posição estratégica no comércio de escravos por fazer a ligação do litoral com o interior, sobretudo de Minas Gerais, pelo Caminho do Pomba, que ia de Campos até Ouro Preto. O pesquisador diz não descartar a hipótese de o autor mineiro ter visitado a cidade, da qual escreveu, pela importância dela.

- Não sei se ele chegou a visitar a Campos. Possivelmente pode ter ido visitar porque o imperador Dom Pedro II foi lá em 1847 e voltou mais duas vezes. Nisso, havia muita notícia nos jornais sobre as visitas do nobre, ainda mais pela pujança do açúcar a partir de 1830 – destaca.

O caso é confirmado pela neta de Alberto Lamego, Maria Claudia Lamego Teixeira Soares, hoje com 75 anos. Apesar de só ter vivido no casarão até os sete anos, ela lembra das histórias ditas pelo pai, Alberto Ribeiro Lamego. Quando era pequena, ouviu dele que o próprio Bernardo Guimarães se hospedou por algum tempo no Solar e a partir disso, teria se inspirado para o livro.

- Como historiador e grande colecionador de livros e documentos, meu avô era amigo de vários escritores da época, como Bernardo Guimarães. Por ser totalmente contra a escravidão, o pai de Bernardo o mandou para Campos, porque o autor estava até sendo perseguido. Passando uns tempos nos Airizes com meu avô, ele se inspirou nas pessoas da fazenda para a obra. Naquele tempo ainda havia descendentes de escravos morando lá como agregados – lembra.

Desde então, a existência de Isaura ainda é discutida, mas os pesquisadores não descartam a hipótese de que seja verdade, desde haja uma comprovação documentada.  Para a maioria dos moradores da cidade, o Solar ainda é motivo de fascínio e mistério e para os estudiosos, de desconfiança e dúvidas.

Fotos de Eduardo Manhães, Carlos Alves e do 

Arquivo do Museu Histórico de Campos

bottom of page