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o mundo ainda busca a liberdade
de Isaura 40 anos depois

Por Tâmara Carvalho

Considerada um dos maiores fenômenos brasileiros da comunicação de massa, a novela “Escrava Isaura” chega aos 40 anos sem perder a força que a consagrou no mundo todo: a exaltação da utopia da liberdade, exposta em cada um dos 100 capítulos que compõem a trama. A fórmula de sucesso que manteve a novela no topo do ranking das mais vistas e exportadas foi a união da questão racial e da liberdade, temas centrais da sociedade e que incomodam até hoje. A telenovela foi ao ar no dia 11 de outubro de 1976 e desde então, ganhou o coração do brasileiro e do estrangeiro e representou a vitória do mercado cultural brasileiro no exterior.

 

– O tema da liberdade é sempre urgente. A liberdade e o preconceito pautam tudo no mundo – explicou o especialista em teledramaturgia Mauro Alencar. 

Em comemoração às quatro décadas da exibição da novela, os alunos de jornalismo da PUC-Rio resgataram a história desse fenômeno da dramaturgia e retomaram as discussões propostas pelo autor Gilberto Braga, entre elas, exploração do trabalho e violência contra a mulher. O novelista fez uma adaptação do romance de Bernardo Guimarães, a “Escrava Isaura”, que se utilizava de uma escrava branca para descrever o sofrimento desse grupo, a fim de criar uma empatia com as classes consumidoras de telenovelas. O enredo foi bem recebido e chegou a ser exibido sete vezes na França, cinco na Alemanha, três na Suíça e em países africanos e comunistas, totalizando mais de 100 territórios.

 

Segundo o autor do livro ““A Hollywood Brasileira - Panorama da Telenovela No Brasil” e especialista em dramaturgia, Mauro Alencar, “Escrava Isaura” firmou a internacionalização do produto televisivo brasileiro assim como abriu as portas que ainda estavam fechadas, como dos países comunistas do Leste Europeu.

Abertura da novela na Alemanha, exibida já pela quinta vez

Álbum de figurinhas da novela lançado em Cuba em 1984
 

Crítica ao preconceito por meio da ironia 

Adaptada por Gilberto Braga e dirigida por Herval Rossano e Milton Gonçalves, a novela mostrava a luta pela liberdade e pelo respeito pessoal. O especialista explicou que a artimanha do romance foi criticar o preconceito por meio de uma ironia. A ideia era pensar o preconceito através de uma figura extremamente branca, fluente em francês, que tocava piano, cozinhada bem, mas que era escrava. Ele diz que o preconceito começa a partir do momento que percebem que Isaura tinha sangue africano. Mauro ressaltou que Isaura só poderia ser branca, porque foi o fato de ser branca e escrava que impactou o mundo, pois criticou o preconceito enraizado na sociedade:

– Se você coloca uma negra, já tem algo escancarado. De cara, alguns já poderiam rejeitar a trama. Ela sendo branca geraria uma empatia da massa com a novela. Para ter o choque era preciso a branca que ela fala até francês, mas porque é descendente de negro não é considerada mais tão boa assim. A novela foi um soco na cara da sociedade – ressaltou Mauro.

Segundo Mauro, a luta racial exposta na novela sensibilizou outros povos que vivem a mesma luta, mesmo que de forma diferente, pois em todos os lugares existe um preconceito. Ele explicou que os outros países colocaram Isaura como um estandarte contra o preconceito e cada povo foi transportando Isaura para sua cultura.

Em unidade com as questões fortemente debatidas na trama, Mauro destacou também que Escrava Isaura reuniu um romance de um grande autor que tinha potencial para ser um bom roteiro para telenovela e ainda uma brilhante adaptação de Gilberto Braga, apoiado em uma pesquisa histórica que ampliou os personagens e as situações. Ele apontou ainda a trilha sonora como um dos fatores técnicos que elevou a novela a um sucesso internacional.

– A música “Retirantes” de Dorival Caymmi e Jorge Amado dialoga perfeitamente com as gravuras de Debret para a abertura da novela. A trilha conta ainda com “Prisioneira”, de Elizeth Cardoso e “Mãe Preta”, do Coral Som Livre, entre outras que retratavam com exatidão a luta de Isaura para libertar-se de Leôncio – apontou o especialista.

Capítulo em que Isaura é desmascarada/ Reprodução Globo

Atores que deram vida aos personagens de Bernardo Guimarães 

Em uma novela não pode faltar uma boa história de amor. Em seu livro “A Hollywood Brasileira - Panorama da Telenovela No Brasil”, ele explicou que “Escrava Isaura” usou o método infalível do mito Cinderela, apontando também como um dos fatores que fez da novela um sucesso internacional. Ele lembrou que a trama coloca até a famosa cena do baile, só que em vez da carruagem virar abóbora, a protagonista é desmascarada. 

A escolha dos personagens também é um ponto destacado por Mauro. Lucélia Santos como Isaura, em sua primeira atuação na TV, conquistou os telespectadores. Mauro recorda que em uma conversa com Herval, ele contou que quando conheceu Lucélia percebeu que ela tinha um pequeno estrabismo, e viu que ela seria a personagem perfeita para ajudar no olhar cabisbaixo e de “lamento” da personagem. Rubens de Falco assumiu o papel de Leôncio como o senhor de escravos e deu vida a um vilão louco, mas que ganhou o coração do público. O abolicionista da trama foi vivido por Edwin Luisi que se transformou em Álvaro, o único que não tinha preconceito e passou a ser a imagem de bondade da novela.

Ele destacou ainda a personagem Malvina, interpretada por Norma Blum, que mostrou o empoderamento da mulher, que já estava muito em voga em 1976. Mauro explicou que a Malvina criada por Gilberto Braga não é a Malvina do romance. A Malvina de Bernardo tornou-se a Aninha (Myrian Rios) na novela, que tinha um comportamento mais sereno. Já a Malvina de Gilberto tinha um temperamento diferente, ela enfrentava o marido Leôncio para defender a escrava Isaura. O autor teve que eliminar a personagem em um incêndio criminoso e aproveitou também para eliminar Tobias, primeiro par romântico de Isaura. Enredo propício para retomar a linha do romance, pois ambos os personagens foram criados por Gilberto para dar um ar mais novelesco para o romance.

22 capítulos viraram 100 

Mauro contou que nada ficou perdido da transição do romance para a novela, mas, pelo contrário, Gilberto Braga não só aproveitou tudo como também fez alguns acréscimos. Em seu livro, Mauro explicou que ao se adaptar um romance para a telenovela, são indispensáveis algumas mudanças e que no caso de “Escrava Isaura”, era preciso transformar 22 capítulos em 100. Mas, ele contou, que o exotismo permaneceu e que isso certamente foi um dos pontos fortes da venda no exterior.

A novela foi exibida, no Brasil, em 1976, período do Governo Geisel onde o país começava um lento processo de transição rumo à democracia. O especialista explicou que no início da novela, o vocábulo “negro”, por exemplo, foi proibido pela censura que pediu a alteração da palavra por “peça”.

– Com relação a cortes, com Isaura não teve isso. Ele tinha muito cuidado porque era no horário das 6 horas. “Escrava Isaura” é um romance romântico, então era mais fácil de se defender por aí – lembrou o especialista.

 

Gilberto Braga revela que não gostou da novela 

No livro “Autores: histórias da teledramaturgia”, da Editora Globo, Gilberto Braga revelou que até hoje não entende o motivo do sucesso da novela “Escrava Isaura”. Para ele, o maior fenômeno de “Escrava Isaura” é que ele, pessoalmente, achou a novela horrível. Ele contou que escreveu de forma muito despreocupada com a qualidade, de olho no relógio, como um maratonista.

– Era uma produção horrorosa. Eu não gosto, especialmente, do elenco, nem do meu texto. O que era bom ali era a temática do Bernardo Guimarães, que é muito forte. Quanto a isso, não há dúvida. Claro, existia uma certa técnica, não vou dizer que eu e a direção éramos totalmente ineptos. Mas, francamente, não gosto – contou Gilberto Braga.

Gilberto contou que a ideia da adaptação foi sugerida por uma ex-professora de literatura brasileira do colégio, pois como ele não gostava de romantismo brasileiro sempre ia atrás das professoras antigas para pedir ideias. Em uma conversa, Eneide do Rego Monteiro disse para ele que para a televisão o ideal seria o romance “Escrava Isaura”. Ele comentou que logo depois daquela conversa saiu correndo para comprar o livro e ligou para Herval Rossano que também estava procurando com ele o que adaptar.

– Quando você vê a espinha dorsal daquela história, logo percebe que dá novela. Herval achou a mesma coisa. Aquela história nasceu para ser novela de televisão. Nem é um bom romance, é mal escrito, confuso, tem uma estrutura péssima, mas tem a força do novelão – disse o novelista.

Para o autor, o que fez da novela um sucesso internacional foi a temática forte, que trazia um senhor de escravos que era dono de uma mulher que cobiçava, mas que não queria relacionar-se com ele. Ele explicou que até hoje não encontrou nenhuma história tão forte quanto “Escrava Isaura”, que tem um enredo que envolve qualquer pessoa.

- Todos temos medo de quem é mais forte do que nós. A identificação com esse medo é que atrai o espectador em qualquer lugar do mundo. Acho que o sucesso vem daí – ressaltou o autor da novela.

Ele revelou que sente-se mal por não gostar do elenco e explica que achou a escalação de Lucélia Santos estranha, pois ela é muito branca e em sua concepção deveria ser, no mínimo, morena. Gilberto contou que apesar do sucesso, continua achando que Lucélia não tinha o tipo, achava ela diferente dos outros atores que eram mais impostados, e achava ela uma atriz moderna demais.

Lucélia Santos

e Gilberto Braga

A atriz Lucélia Santos ao lado

do especialista em teledramaturgia

Mauro Alencar/ Arquivo pessoal

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