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O RACISMO BRASILEIRO: DO FOLHETIM À TELENOVELA

Por Augusto Brandão

“O romance de Bernardo Guimarães não condena a escravidão africana em si, mas a escravidão da escrava branca, Isaura”. É o que afirma Darville Lizis, mestre em Letras pela UFRJ, e pesquisador das lendas orais da região de Minas Gerais. Segundo ele, ‘A escrava Isaura’ é um elogio da mestiçagem e do embranquecimento como possibilidade de construção da identidade nacional, nos livrando da ‘herança maldita’ da escravidão negra.


Publicado em 1875, ‘Isaura’ narra os sofrimentos de uma escrava de pele quase branca, que permanece pura apesar das contínuas investidas de Leôncio, seu senhor. Embora filha de uma escrava mestiça com um feitor português, ela tem a cor branca como as teclas do piano, e a educação civilizada de qualquer senhora. Ao final do livro, Isaura é justiçada pelas mãos do rico Álvaro, jovem romântico, burguês e abolicionista, que a liberta e desposa. 


Para Lizis, o romance expande as ideias já utilizadas por Bernardo Guimarães no conto ‘Uma história de quilombolas’, publicado em 1871. Assim como Isaura, a personagem principal do conto, Florinda, é descrita como mestiça de tez quase branca, objeto da competição dos homens que se casa, ao final da trama, com Anselmo, mulato de hábitos sofisticados. O pesquisador destaca como o autor repete, no conto, os mesmos elementos do romance: a mestiça de tez quase branca, o negro africano como inferior e bárbaro, a volúpia sexual da mulata. 


No romance como no conto, a narrativa resolve a passagem para a civilização através do embranquecimento da população que a mestiçagem proporcionaria. A imoralidade da escravidão não justifica as tentativas de revolta ou insurgência do negro, encarnados nos personagens do líder quilombola Zambi Cassange, e na antagonista de Isaura, a escrava Rosa. A liberdade da mestiça quase branca ocorre dentro da ordem social: Florinda e Isaura são alforriadas por meio do casamento, que aparece como meio de promoção da miscigenação e desvinculação dos cultos africanos.  

“Rosa, mestiça de pele um pouco mais escura, é descrita no livro como mulher fácil, amante do seu senhor. Já Isaura, de pele quase branca, se mantém pura ao longo da trama, resistindo às investidas de Leôncio. É como se Bernardo Guimarães se antecipasse a Gilberto Freyre: a negra para trabalhar, a mestiça para o sexo, e a branca para casar” – afirma Lizis. Em ambos os textos, a cor dos personagens dita um lugar específico dentro da narrativa: diferentes peles, diferentes lugares na casa grande e na senzala. 

Uma questão moral

Para Lizis, a abolição da escravidão defendida por Bernardo Guimarães e outros intelectuais era, sobretudo, uma questão moral. “É importante destacar que os abolicionistas não estavam preocupados com a igualdade racial. Essa é uma pauta muito recente na nossa história”. Vista pelo prisma da aristocracia branca que compunha a intelectualidade do Império, a abolição era necessária à transição rumo à civilização burguesa, representada em ‘Isaura’ na personagem de Álvaro. 


A “natureza privilegiada” com a qual Isaura é descrita no romance adquire matizes de superioridade biológica, antecipando as teorias racialistas que seriam desenvolvidas no final do século por Silvio Romero e Nina Rodrigues. Se “Isaura” é descrita como garça real em meio a pássaros vulgares, em “Uma história de quilombolas”, a cor dos personagens dá o tom de sua posição dentro da narrativa, cabendo aos de pele mais escura, como Zambi Cassange e sua companheira mãe Maria, características animais: “faces retalhadas”, “dentes agudos” como os da onça ou do cão, figuras “hediondas”. 


Como Nina Rodrigues, o narrador de “Uma história de quilombolas” descreve as religiões africanas pelo seu aspecto sinistro e hediondo, oposto ao matrimônio de Florinda e Anselmo na capela de Nossa Senhora do Carmo. Mas além da benção do casamento na igreja frequentada pela alta sociedade de Vila Rica – e que, ao contrário da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, não possuía santos negros –, o casal mestiço recebe outra dádiva ao final do conto: a alforria de Florinda. Segundo a historiadora Daniela Silveira, é como se o autor tentasse separar a mestiçagem da escravidão: 


“Sua estratégia foi a de desvalorizar tudo aquilo que fosse originário da África e mostrar como apenas por meio da miscigenação seria possível regenerar os costumes daquele povo. Encontramos os personagens Anselmo e Florinda como os representantes do futuro da nação brasileira. Bernardo Guimarães se opunha à escravidão, mas o fazia indicando que a escravidão poderia alcançar também os próprios brancos” – conclui. 
Esse era um medo comum na época, e não apenas na literatura. Como afirma Daniela, jornais da época retratavam com pesar a condição dos escravos de pele branca. É assim que na Gazeta de Notícias de 1886, uma matéria descreve a grande pena sentida pelos membros de uma cerimonia imperial diante de dois escravos “perfeitamente brancos”. 


Para Daniela, há um outro aspecto da mestiçagem enfatizado pelo autor: o de gênero. Sobretudo em “quilombolas”, existe uma distinção marcada entre a caracterização do casal de mestiços. Enquanto Florinda, mestiça quase branca e sexualizada, é descrita praticamente sem caracteres negros, Anselmo carrega a marca do sangue africano no cabelo crespo:


“Era um moço bem-disposto, de fisionomia agradável, de olhos negros e expressivos; trajava com asseio e esmero, e os arreios de sua cavalgadura cintilavam ao sol, cobertos de prataria. Posto que de tez clara, todavia pela aspereza de seus cabelos negros e crespos, se conhecia claramente que tinha nas veias sangue africano”. Florinda aparece, assim, como a mãe mestiça da nova nação, capaz de cumprir a promessa de embranquecimento da população por meio da miscigenação. 

Dos jornais ao samba


De anúncios de compra e venda, à descrição de pesquisas evolucionistas, homens e mulheres negros eram objeto de boa parte das páginas dos jornais na segunda metade do séc. XIX. A leitura de algumas destas matérias demonstra como o imaginário racista da sociedade brasileira se refletia na imprensa. Apenas três anos depois do lançamento da primeira edição de “Isaura”, no dia 03 de julho de 1878, o Correio Paulistano publicou a seguinte matéria, ironizando a possibilidade de negros terem os mesmos comportamentos de pessoas brancas: 


“COMO ELLES SÃO
O folhetinista da Gazeta narra na viagem a Maceió e entre outros narrou um caso ocorrido a bordo. O Presidente do PE que estava a bordo trazia consigo um criado bonito, creoullo, de bigode e cavagnacs, pisar forte amante dos versos de Varella cujos hinos sobraçava em POSE e lia com atenção de se fazer notar... Ao fim do jantar do primeiro dia da viagem um dos passageiros ao voltar ao camarote deu denúncia ao comandante que lhe faltava um relógio, um PINCE-NEZ e uma corrente de ouro. No salão nobre o qual subia os camarotes só tinham ficado duas pessoas, um alquebrado de enjoo e o criado de fazer VIDA LITERÁRIA. Houve pesquisa e epilogou-se pela prisão do LITERATO que obteve a posição de criado presidencial mediante valiosas cartas de recomendação segundo houvi dizer... Para cúmulo da desgraça do gatuno completamente descoberto ao saltar na Bahia aparece-lhe um espírito: o seu senhor que havia muito tempo o procurava em vão”. 


Outras notícias faziam referência às teorias evolucionistas em voga, e descreviam casos que comprovariam a tese da inferioridade da raça negra em relação à branca.  É o caso de ‘Menino de Rabo’, publicada no mesmo jornal em 2 de setembro de 1890, dois anos depois da abolição:

 
“Um menino recolhido actualmente em uma casa de caridade apresentava um fenômeno significativo. O Menino Francisco Bicodo com 10 a 12 annos de idade, caboclo, mulato (...) tem no final do espinhaço um rabo de mais ou menos 7 cm como se fora um cão. Como não se fora um MACACO e a enrola-se e tende a crescer. Agora os DARWINISTAS devem bater palmas de contentes e exultar de prazer vendo no rabo do menino um ponto de apoio a sua doutrina scientífica”. 


Tendo estudado na capital paulista, berço do liberalismo no Brasil, Bernardo Guimarães colaborava com o periódico carioca Reforma na época em que escreveu “Isaura”. Ao contrário do conservador Correio Paulistano, Reforma era de orientação liberal, e contava com a participação de outros escritores, como Joaquim Manuel de Macedo e José de Patrocínio. Os escritos de Bernardo Guimarães, assim, estavam ligados a um contexto político de defesa da abolição, ainda que pelo viés específico da literatura, e do destaque às distinções de cor entre os próprios escravos. 


Se ainda não era possível falar de uma mídia de massa no Brasil do séc. XIX, já era visível o lugar de destaque ocupado pelo debate acerca da miscigenação entre as raças e da herança da escravidão negra no imaginário social. Um debate que, segundo Renato Ortiz, nasce do imbricamento entre mídia, intelectuais e estado. Ao longo do século XX, as ciências sociais, as manifestações artísticas e as políticas culturais do estado disputariam diferentes noções de identidade nacional. Todas elas passariam, invariavelmente, pelo problema do mito das três raças. 


O populismo seria capaz de conciliar os diferentes interesses políticos em jogo, produzindo uma imagem de Brasil que pudesse resolver o abismo entre a nova massa urbana de trabalhadores e a burguesia desenvolvimentista. A elite cultural e econômica, que até então via com desconfiança as manifestações da cultura negra urbana, passaria a abraçá-las, tomando-as por símbolos da identidade nacional. Identidade que, após Gilberto Freyre, consolidaria a mestiçagem como versão adocicada do passado escravocrata. Afirmar a identidade mestiça do brasileiro era não apenas um projeto de cultura, mas de união ideológica de um país dividido em torno de um mesmo projeto nacional. 


Tempos idos, de Cartola, é exemplo desta realidade:


"Os tempos idos
Nunca esquecidos
Trazem saudades ao recordar
É com tristeza que eu relembro
Coisas remotas que não vêm mais
Uma escola na Praça Onze
Testemunha ocular
E perto dela uma balança
Onde os malandros iam sambar
Depois, aos poucos, o nosso samba
Sem sentirmos se aprimorou
Pelos salões da sociedade
Sem cerimônia ele entrou
Já não pertence mais à Praça
Já não é samba de terreiro
Vitorioso ele partiu para o estrangeiro
Conseguiu penetrar no Municipal
Depois de percorrer todo o universo
Com a mesma roupagem que saiu daqui
Exibiu-se para a duquesa de Kent no Itamaraty"

Mas se o samba entra pelos salões da sociedade, ele o faz como em "Casa Grande & Senzala": é a elite branca que o afirma, por meio de um pacto onde pouco sobra para homens e mulheres negros. Embora deixe de ser perseguido, tampouco será reconhecido como manifestação da cultura negra, esvaziado de sua potência política para servir de propaganda da identidade nacional, que se afirma mestiça, mas abafa os conflitos sociais de classe, gênero e raça. 


"Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora esta navalha que te atrapalha

Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo um samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão

Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado"  

 

“Rapaz folgado, Noel Rosa

 

Dos salões da sociedade às salas das casas, a mídia de massa seria a responsável por representar essa nova identidade mestiça, fosse nos jornais, no rádio ou na televisão.   


Tela mestiça, tela racista

 

No documentário “A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira”, que recebeu o prêmio de melhor filme no festival É Tudo Verdade, o cineasta Joel Zito Araújo demonstra como a história da teledramaturgia brasileira foi marcada pelo que denomina de estética do branqueamento. Ele aponta que, de um total de 500 novelas que foram ao ar no período de 62 a 98, um terço não tinha sequer um personagem negro, nem mesmo como empregada doméstica. 


“Nos outros dois terços, os negros apareciam como jagunços, serventes, bandidos, motoristas: representações da feiura, do atraso, da subalternidade e do exótico, ao contrário dos mocinhos, sempre retratados com características germânicas. É como se a televisão, a publicidade e o cinema ‘blockbuster’ brasileiros insistissem na afirmação da superioridade da raça ariana, ideia derrotada da segunda guerra mundial” – afirma.  
Dentre as estratégias desta estética do branqueamento, Araújo aponta como as telenovelas se preocuparam em reconstruir de forma adocicada o imaginário nacional sobre a história do país. É o caso de Escrava Isaura, primeiro grande sucesso da novela das seis que enfocava a historia da escravidão, mas que tinha como protagonista uma atriz branca. 


“Escrava Isaura pouco refletiu a cultura e a resistência negra durante o período da escravidão, e acabou por fazer uma leitura do comportamento dos escravos a partir da casa grande. O desfecho da novela demonstra uma concordância do adaptador com a versão oficial da história. A libertação dos escravos foi apresentada como um ato de bondade dos brancos, em especial do romântico Álvaro, um jovem rico sensibilizado pelos sofrimentos de sua amada”.


Gilberto Braga acabaria por reproduzir o preconceito racial do romance de Bernardo Guimarães, ao adaptá-lo sem ressalvas. Mas se em 1875 o racismo impregnava praticamente toda a produção de conhecimento, e a produção literária atingia um público muito restrito, um século depois a realidade definitivamente não era a mesma. Sob a desculpa de não poder chocar, a televisão se exime da responsabilidade política pelo conteúdo que produz, fazendo da brasilidade uma estética vazia. 


Responsabilidade que é levada a sério em outros meios de comunicação, como o cinema brasileiro. O filme Xica da Silva, lançado no mesmo ano de A Escrava Isaura, exemplifica essa diferença. Para Lizis, a decisão do diretor Cacá Diegues em escolher Zezé Motta para o papel da personagem principal foi acertada. Enquanto que na literatura as representações de Francisca da Silva de Oliveira variam segundo diferentes tons – chegando mesmo a variações em que sua figura é descrita como outra Isaura, de tez quase branca – a escolha de uma personagem de pele negra não apenas afirma a influência africana, como desconstrói a associação entre beleza e branquitude característica do imaginário nacional.

 
Mas para Herval Rossano, responsável pela escolha de Lucélia Santos para o papel de Isaura naquele mesmo ano, a cor da personagem não parece ter a mesma importância. Para ele, a questão foi obra do acaso. “Foi uma coisa de intuição, não foi pensado se ela deveria ser descendente de negro. Foi coincidência que ela fosse tão branca como Lucélia” - afirma Rossano, em entrevista concedida ao cineasta para o documentário. 


Se hoje a televisão já não é mais a mesma da década de 70, e atores e atrizes negras possuem cada vez mais destaque, ela ainda está longe de representar a composição étnica da sociedade. Papéis que dizem respeito a posições de subalternidade ou estereótipos como a sexualização da mulher negra ainda são frequentes, a exemplo da recente polêmica da minissérie Sexo e as Negas. Resta saber se nos 80 anos de Escrava Isaura, estas questões terão recebido um tratamento mais adequado. 
 

Trecho do documentário "A negação do Brasil"

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